Não é que eu seja muito apaixonado por rótulos e organização que a boa ordem impõe. Muito menos quando se trata de determinar aspectos criativos ou artÃsticos tão distantes de qualquer vontade classificatória. Mas a verdade é que no momento em que a partir da mera observação de uma bibliografia (neste caso a de Carme riera), é necessário diferenciar as etapas criativas, nada mais relevante pode significar do que a própria vontade de mudança do autor. Uma intenção muito saudável de descobrir novas vozes narrativas no mesmo criador.
E tudo o que se procura, ou se desafia, ou que explora novos caminhos que não o fácil posicionamento é sempre louvável, independentemente do maior ou menor grau de realização.
E sim, além disso, é possÃvel navegar com igual facilidade por diferentes águas, o presente acaba sendo confirmado. E qualquer leitor ou crÃtico não tem escolha a não ser tirar o chapéu para reconhecer esse tipo de comunhão entre gênio e vontade.
Carme Riera cultivou a história, o ensaio e o romance. E é neste último aspecto da narrativa ficcional que também foi esbanjado em gêneros dÃspares, como ficção histórica, ficção policial, retratos sociológicos ou modos particulares.
Assim, neste escritor, acadêmico da lÃngua e premiado em prestigiosos reconhecimentos das letras, podem ser encontrados romances para todos os gostos.
Os 3 melhores romances de Carme Riera
No ultimo azul
Como romancista histórico, este é talvez seu romance de maior sucesso. Para isso, Carme Riera se concentrou em alguns eventos trágicos em suas terras de Maiorca.
Que a trajetória do povo judeu tem sido tradicionalmente uma odisséia, não há dúvida, que na Espanha das várias civilizações houve um tempo em que eles eram considerados ferrenhos inimigos de tudo que era espanhol, mesmo usando a justificativa do cristianismo para isso, nem é pode duvidar.
Os autos de fé foram reproduzidos em toda a Espanha por 300 anos! Neste livro, encontramos um grupo de judeus que, por volta de 7 de março de 1687, fugiu para a frente.
O medo de acabar sujeito àqueles julgamentos sumários em que a defesa simplesmente não existia os levou a uma busca por novos mundos a bordo de qualquer navio. Eles falharam e a verdade suprema da fé os perseguiu durante seus últimos dias.
Uma história fascinante daquele mundo sombrio em que Carme nos apresenta personagens muito diferentes, desde os nobres mais hipócritas às almas mais nobres da rua.
Eu vou vingar sua morte
A prosperidade econômica tende a esconder, sob o manto quente de seu ciclo natural, o pior da condição humana: a ambição. E é que nesse frenesi de dinheiro que circula desenfreadamente quando se pintam o ouro, essa ambição que em abstrato poderia ser considerada como um impulso econômico lÃcito acaba por despertar monstros, como o sonho da razão de Goya.
A Espanha em 2004 foi aquele paÃs que ainda acreditava na inércia impossÃvel que guia a mão invisÃvel de Adam Smith, só que esta mão, como nos jogos de azar, acaba arrastando tudo para o banco (entendam bancário, rico, poderoso e outras elites guiado pela ambição).
Naquela economia que virou jogo, a trapaça estava na ordem do dia, a corrupção andava com a aquiescência dos polÃticos de curto prazo (não há outro tipo), que só entendem que se o hoje funcionar bem, o amanhã imediato terá mais votos .
Um cenário perfeito para Carme Riera apresentar-nos o enredo deste romance, em sintonia com aquele outro romance dela, Quase Natureza-Morta. A agente Rosario Hurtado dá o testemunho nesta ocasião a Helena MartÃnez, uma detetive particular que deve descobrir o que aconteceu com um empresário catalão.
A busca por Helena acaba se tornando um cenário facilmente reconhecÃvel de nosso passado mais recente, aquele que causou nossa situação atual antes da mudança de paradigma econômico em que ainda não sabemos quais horizontes nos aguardam.
E é que a trama se move para duas águas, entre o thriller e a crÃtica social, como uma espécie de romance policial dos anos oitenta, no estilo de Gonzalez Ledesma, intenção muito necessária neste gênero para resgatar aquela ideia de romance policial cuja escuridão paira sobre realidades sociais e polÃticas muito próximas.
O que é mais sombrio do que a corrupção e a falsidade de tantos personagens que vemos circulando nas notÃcias? PolÃticos eloqüentes que acabam se descobrindo como ladrões de primeira linha, que acabam escapando da justiça sob a proteção da prescrição de crimes ...
Assim, um romance com muito gosto de novela negra e que vem entreter e narrar nossos tempos. Um romance brilhante com grandes doses de ironia para ver o que se move nas altas esferas do poder.
A voz da sereia
Em um escritor versátil como Carme, a surpresa é sempre garantida. Se a esse fator interessante se soma o bom trabalho de um escritor total, encontramos neste romance uma alegoria do feminismo, ou do bem, ou da sublimação da fantasia e da fábula diante de tanta ignomÃnia hoje.
A protagonista é a pequena sereia, sim, aquela personagem metade mulher, metade peixe que, quando Andersen a publicou em 1837, podia deliciar leitores em todo o mundo. Mas a história tinha suas deficiências, ou brechas, ou meias-verdades.
Carme Riera dá voz à pequena sereia para justificar sua abnegação. O amor cego a privou na hora de expor suas explicações. Chega a hora de ouvi-lo e entendê-lo entre seu papel mitológico e uma leitura bem mais atual ... Um romance que teria encantado um Jose Luis Sampedro com sua transcendental Velha Sereia debaixo do braço.